Por Ana Catarina Carvalho Libarino Rocha*
Resumo: Desde os primeiros traços até os desenhos mais elaborados, o desenho das crianças sempre fascinou não só os pais como também os profissionais da área da saúde mental. Em particular, os psicanalistas têm utilizado o desenho como uma ferramenta importante na compreensão da dinâmica psicológica infantil. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo apresentar a importância dos desenhos das crianças na análise psicanalítica, destacando como essa técnica pode ser utilizada para compreender aspectos emocionais e mentais da criança, auxiliando na identificação de conflitos, traumas, medos e necessidades. Com isso, esperamos contribuir para o aperfeiçoamento das atividades desenvolvidas em consultórios psicanalíticos e para uma melhor compreensão do mundo infantil.
Palavras – chaves: desenho infantil, psicanálise, psicologia infantil.
LINGUAGEM: UM SISTEMA DE SÍMBOLOS
A linguagem é um sistema de símbolos culturais internalizados, e é utilizada com o fim último de comunicação social. Da mesma forma como acontece com o pensamento e a inteligência, seu desenvolvimento passa por etapas até que finalmente a criança chegue a utilizar frases e palavras.
Segundo Dominique Maingueneau (apud ELANE, 2007) “a aquisição da linguagem tenta explicar entre outras coisas o fato de as crianças por volta dos 3 anos, serem capazes de fazer o uso produtivo de suas línguas”. Quando a criança nasce não entende o que lhe é dito. Aos poucos, começa a atribuir um sentido à escuta. Da mesma forma, acontece com a produção da linguagem falada, que evolui.
Sarmento e Pinto (1997) postulam que ouvir as crianças é buscar uma possibilidade de compreender a sociedade, porque esta não é formada apenas por adultos, para os quais se valoriza a expressão de suas ideias, mas também pelas crianças e pelos sentidos atribuídos por elas à realidade.
A linguagem usada pelas crianças é diferente daquela utilizada pelos adultos, na qual a palavra e o enunciado articulado predominam. Na comunicação ao seu redor, a criança utiliza a linguagem corporal, a linguagem gutural e a linguagem gráfica através de palavras, desenhos e rabiscos. Essa fala não é necessariamente compreensível para quem não divide de seu universo de significados, o que solicita novas formas de abordagem e de recursos com esses indivíduos.
A comunicação com a criança pode ser interpretada na clínica psicanalítica, desde que seja observada, em primeiro momento, a relação entre a realidade dela e sua representação-coisa - ou seja, sua elaboração interna sobre o real; para, em segundo momento, possa ser explorada a relação entre a representação-coisa e sua representação-palavra, que é a forma como a criança exprime seus objetos simbólicos (FALCÃO, 2016).
INTERPRETAÇÃO DE DESENHOS INFANTIS À LUZ DA PSICANÁLISE
No contexto terapêutico, o desenho infantil é analisado a partir de uma perspectiva histórico-cultural em psicologia, em que tanto o processo de desenho quanto o produto final são considerados relevantes.
A teoria de Lev Vigotsky traz avanço na compreensão do desenho, pois destaca que a figuração reflete o conhecimento da criança e sua realidade conceituada, formada pelo significado da palavra. Assim, a ênfase não está no resultado em si, mas na interpretação que o autor faz do processo de desenho e na compreensão da realidade por meio da imagem produzida (FERREIRA e MORO, 2001).
Ao observar as atividades das crianças, é notável que elas frequentemente desfrutam de desenhar. Os desenhos funcionam como um meio privilegiado de expressão de suas ideias, vontades, emoções e percepções da realidade (GOBBI e LEITE, 2005).
Embora o desenho pareça pertencer ao universo infantil e ser algo típico de crianças, é possível encontrar neles um mundo fantástico ou imaginário, que pode ser interpretado como uma expressão da realidade da criança.
Ao interpretar um desenho, é importante, portanto, considerar diversos aspectos como linguagem, imaginação, percepção, memória, emoção e significação. Todos esses processos psicológicos estão interligados e não podem ser examinados de maneira isolada. Além disso, é preciso levar em conta que o desenvolvimento desses processos pode variar de acordo com as condições sociais, culturais e históricas, bem como os lugares sociais que cada indivíduo ocupa na sociedade. Esses fatores influenciam ativamente a maneira como o desenho é compreendido e criado pelas crianças.
ANNA FREUD
A criança não tem consciência de suas questões psicológicas, nem acha que tem um “problema” para resolver. Normalmente são seus pais que estão preocupados ou angustiados diante das dificuldades apresentadas pelas crianças. Neste sentido, falta à criança o elemento fundamental para a entrada de um paciente em análise, que é o mal-estar em relação a seu sintoma e a necessidade de tratamento. Para suprir essa falta de percepção do sujeito sobre si mesmo, Anna Freud propõe um período de preparação, de entrevistas preliminares, para produzir artificialmente uma demanda de análise, ou seja, conscientizar a criança de seu sofrimento e da necessidade de ser ajudada.
Em 6 de junho de 1927, Freud escreve a Ernest Jones que Anna Freud está certa quando sugere que o supereu da criança ainda se encontra sob a influência dos pais. Em outra carta a Jones, datada de 23 de setembro de 1927, critica Melanie Klein por privilegiar apenas a imagem inconsciente que a criança tem dos pais — baseada em suas fantasias e componentes pulsionais, em detrimento da importância dos pais da realidade (COSTA, 2007).
Para continuar o legado de Abraham, Melanie Klein desenvolveu sua prática clínica com crianças a partir da convicção de que a teoria psicanalítica poderia ser empregada nesse público sem grandes modificações, desde que mantida a essência do processo. Dessa forma, ao analisar os pequenos pacientes, ela não só conseguiu reafirmar as deduções freudianas em relação à infância, obtidas a partir das análises com adultos, como também obteve novas descobertas que contribuíram significativamente para a expansão dos estudos psicanalíticos nesse âmbito (COSTA, 2007).
MELANIE KLEIN
Melanie Klein descobriu que a criança relaciona-se muito fortemente com seus objetos de afeto em sua primeiríssima infância, mesmo que seu aparelho psíquico ainda não esteja completamente integrado com seu fisiologismo. O bebê se relaciona com a mãe, ou melhor, com a parte da mãe na qual tem interesse no momento — o seio. Percebe-o como um objeto bom ou ideal se estiver num estado de contentamento; ou como um objeto perigoso e perssecutório, se estiver se sentindo frustrado e/ou com raiva (COSTA, 2007).
Melanie Klein afirma que o complexo de Édipo se manifesta nos estágios iniciais da vida, mais precisamente no primeiro ano. É importante que a criança passe pela posição esquizo-paranóide e alcance a posição depressiva para que possa compreender as suas emoções e projetar nelas suas ideias e fantasias. A partir das experiências positivas com a mãe, a criança irá desfazer as projeções que criaram uma imagem dividida da mãe, como uma figura malvada e ideal ao mesmo tempo (COSTA, 2007)
DONALD WINNICOTT
Ao longo de sua obra, Winnicott vai destacar a influência do meio ambiente no desenvolvimento psíquico infantil. O ambiente é sinônimo de cuidados maternos, ou seja, é a mãe, ou algum substituto desta, que irá favorecer ou dificultar o desenrolar desse processo. É por intermédio de seus cuidados e da capacidade que a mãe tem de se adaptar às necessidades do bebê que ele passa a conhecer o mundo. A expressão “mãe suficientemente boa” foi cunhada por ele para designar exatamente essa função. (COSTA, 2007, P.48)
Winnicott acreditava que o ambiente materno era essencial para o desenvolvimento emocional saudável do bebê. Segundo ele, a mãe deve ser sensível às necessidades do filho, atendendo-as de maneira adequada e proporcionando um ambiente emocionalmente seguro. Isso permitiria que a criança desenvolvesse a confiança básica no mundo e em si mesma, bem como a capacidade de tolerar a frustração e de se relacionar com o outro de forma saudável (WINNICOTT, 1988).
Porém, se a mãe não é capaz de suprir as necessidades emocionais da criança, ela pode desenvolver distúrbios graves, como a psicose. Na visão de Winnicott, a psicose é uma forma de defesa utilizada pelo indivíduo que não é capaz de lidar com a realidade de forma saudável. Essa dificuldade pode estar relacionada a uma falha na ligação com a mãe, que não proporcionou um ambiente emocionante adequado para a criança (WINNICOTT, 1988)
Essa ênfase na dependência do sujeito em relação ao ambiente e na importância dos cuidados maternos gerou críticas por parte de outros psicanalistas. Alguns argumentavam que Winnicott negligenciava a importância das relações interiores e que seu foco nos cuidados maternos poderia levar a um julgamento injusto das mães, responsabilizando-as pelos distúrbios psicológicos dos filhos. No entanto, a teoria de Winnicott teve uma grande influência na psicanálise e em outras áreas da psicologia. Seu foco na importância do ambiente emocional para o desenvolvimento humano levou a uma maior atenção aos cuidados infantis e à compreensão das interações entre o indivíduo e o ambiente (COSTA, 2007).
DOLTO E LACAN
Para Françoise Dolto (1984), a especificidade do ser humano como ser linguageiro significava que tudo é linguagem, comunicação. A fala, que é especificamente humana, constitui uma das expressões da linguagem.
Jacques Lacan (1973), por sua vez, diferencia as duas funções nitidamente e não lhes confere o mesmo status, pois, segundo ele, a função de comunicação, cujo princípio é a intersubjetividade, é secundária diante de outra função da língua que é a evocação. Vejamos como Lacan aborda essa questão; Todos os seres humanos comunicam-se pela linguagem, no entanto ela não se reduz à comunicação. Para exemplificar essa diferença, Lacan nos diz que a sua cadela Justine pode dirigir-se a ele, porém falta-lhe a linguagem, assim como acontece com todos os nossos animais domésticos.
Para Lacan (1973), para fazer uso da linguagem é necessário ser sujeito. Podemos tentar entender melhor esta questão a partir da tripartição lacaniana de RSI — Real, Simbólico, Imaginário. O imaginário do animal é pleno, sem brechas, o animal já nasce com um saber sobre a sexualidade, mas falta-lhe o inconsciente, furo real no imaginário que o simbólico não consegue de todo suprir (COSTA, 2007).
De fato, essa fala é retratada como que o sujeito apresenta uma falta originaria já que o animal não funcionaria dessa mesma forma, por isso que Lacan usa a palavra “parlêtre”, onde associa a fala ao ser falante, isto é, ao indivíduo..
CASO CLÍNICO
No livro “Como interpretar os desenhos das crianças", de Nicole Bédard (2021), há uma visão psicanalítica sobre a interpretação de desenhos infantis. Veja um exemplo, a seguir:
Este desenho de acordo com a criança atendida pela autora, é um camundongo que perde os seus globos, mas eles não vão muito longe pois o arco íris está ali para frear o seu voo. Neste desenho, segundo a Bédard (2021), é possível perceber que o elemento principal é o arco-íris, que é um simbolismo que sugere desejo de proteção. Neste caso, o arco íris não só limita o trajeto dos globos como também limita a influência do sol e das nuvens.
A autora percebe que a criança em questão acredita que não tem controle da realidade e que algo lhe escapa, mas qeu está segura, pois tem algo ou alguém (provavelmente seus cuidadores adultos) que estão sempre dispostos a organizar suas necessidades e demandas conforme seus gostos e desejos.
A autora ressalta que o desenho demonstra que há certo elemento de acomodação da criaança com a situação atual, o que reflete certa falta de iniciativa de alguém que já que tem tudo o que precisa. Porém, a autora esclarece que quando se analisa um arco-íris, é preciso ter prudência, pois dependendo do histórico da criança, pode significar que ela está em busca de uma segurança que não possui.
BIBLIOGRAFIA
BÉDARD, N. Como interpretar os desenhos das crianças. São Paulo: Isis, 2021.
COSTA, Terezinha. Psicanáise com crianças. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
DOLTO, F. L’image inconsciente du corps. Paris:Seuil, 1984.
ELANE, C., Oliveira, J.S., Rocha, M. L. (2007). Como as crianças adquirem e desenvolvem a linguagem. Disponível em: www.psicologia.pt/artigos/ver_artigo_licenciatura.php?codigo=TL0075. Acesso em: 25 de set de 2023.
FALCAO, Luciane. Psicanálise com crianças: questões atuais e considerações sobre o processo de alta. Rev. bras. psicanál, São Paulo , v. 50, n. 3, p. 168-183, set. 2016 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2016000300013&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 25 set. 2023.
FERREIRA, Valéria Silva; MORO, Maria Lucia Faria. Desenho e escrita no período inicial da alfabetização. Psicologia da Educação, n. 13, 2001.
GOBBI, M.; LEITE, M. I. O desenho da criança pequena: distintas abordagens na produção acadêmica em diálogo com a educação. 2009. Disponível em: http://www.ced.ufsc.br/~nee0a6/ LEITE.pdf. Último acesso em 25 de set de 2023.
LACAN, J. Seminário 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel. As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo. 1997.
WINNICOTT, D. Derivação e Delinquência. São Paulo: Ubu, 2023.
*SOBRE A AUTORA DESTE ARTIGO
Ana Catarina Carvalho Libarino Rocha é psicanalista clínica, formada pelo CETEP (Campinas, SP), estudante de Psicologia na UNIFTC de Vitória da Conquista - BA. Membro do Grupo Vida e Psicanálise.
COMO CITAR ESTE ARTIGO
Rocha, Ana Catarina Carvalho Libarino. Psicanáise com crianças. Capela de Santana: Revista Vida e Psicanálise, N3, 2023.
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