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O pânico moral gerado pelos bebês reborn

Crédito da fotografia: Revista Malu
Crédito da fotografia: Revista Malu

Por João Pedro Roriz


No início de 2025, vídeos virais expuseram o dia-a-dia de pessoas que interagem com bonecas hiperrealistas chamadas de "reborn" do inglês "renascentes" — como se fossem pais de bebês reais em situações cotidianas como dar banho, ninar e levar ao pediatra.


Esses conteúdos viralizaram no TikTok e em outras redes sociais. Provocaram respostas indignadas da sociedade e da classe política, o que resultou em quase 30 projetos de lei em diferentes estados brasileiros, com propostas de proibição a atendimentos aos bebês reborn em hospitais ou impedimento à prioridade desses bonecos em filas públicas (SILVINI, 2025).


Intelectuais passaram a abordar o tema e ventilar ideias sobre uma possível pandemia de insanidade mental. Conservadores aproveitaram a oportunidade para expor suas convicções sobre uma suposta decadência moral e o fim da tradicional família brasileira.


A explosão midiática envolveu debates nos parlamentos e nos programas de TV. A mídia revelou uma reação social intensa e polarizada. Passados alguns meses, porém, o surto reativo aos bebes reborn parece ter diminuído e aberto espaço na pauta midiática espetacular da Internet para novos temas ainda mais urgentes.


Fica a pergunta: até que ponto, a tendência reborn não foi convenientemente superlativizada pelas redes sociais e até pela imprensa profissional?


O jornalista Fábio Corrêa, do Portal UOL, apurou que a indústria dos bebes ultrarrealistas teve de fato um pequeno crescimento de 8% em 2025, mas ainda compõe fatia de apenas 200 mil dólares em um mercado de bonecas que representa 24 bilhões de dólares anuais. O jornalista apontou ainda que grande parte de consumidores das bonecas que imitam recém-nascidos é formada por adultos com doenças neurológicas ou psiquiátricas e que os brinquedos são, em grande parte, usados como instrumentos para diversas formas de terapia (CORRÊA, 2025).


Tal questão abre espaço para outra pergunta: se o fenômeno dos bebês reborn não passou de um delírio coletivo nas redes sociais e se de fato toda a reação da opinião pública foi exagerada, o que isso diz sobre a saúde mental das pessoas que consomem informações na Internet?


Aparentemente, diferir a realidade e a fantasia é um desafio tanto para os pais reborn quanto para grande parte dos internautas. O ápice do delírio aconteceu no dia 6 de junho de 2025, quando um homem agrediu um bebê de quatro meses que estava no colo de sua mãe e depois justificou a violência ao afirmar que confundiu o lactante com uma boneca reborn (CORRÊA, 2025).


Importa entender o motivo de tamanha perturbação em torno desse tema enfadonho. Afinal, o fenômeno da humanificação de objetos sempre ocorreu, em diferentes partes do mundo, com picos de espetacularização observados de tempo em tempo.


Desde a pré-história, pedras são esculpidas para serem adoradas como deuses. Esse evento está acontecendo agora, em alguma igreja perto da sua casa: pessoas se agrupam em volta de estátuas e de outros objetos considerados sagrados para pedir resolução para seus problemas pessoais. Por que essas pessoas não causam as mesmas indignações que as mães reborn?


Já não é de hoje que a indústria de brinquedos lucra com a venda de bonecas para fins sexuais e essa prática deixou de causar escândalo há muito tempo.


A relação de um náufrago solitário com uma bola de vôlei criou empatia nas pessoas em cinemas de todo o mundo. Nesse sentido, quem não se lembra de um homem musculoso e regressivo chorando em rede nacional quando se viu separado de uma boneca feita de cabides na primeira edição do Big Brother Brasil?


E esses fenômenos tem explicação? Sim. Melanie Klein (1997) foi a psicanalista que passou grande parte de sua vida tentando explicar a relação dos homens com seus objetos de afetos todos representantes da falta materna. Tal fenômeno se dá ainda na primeira infância quando a criança cria amizade com ursinho, paninho, chupeta e defende esses objetos com grande força de expressão. Tal fenômeno é tolerado na infância, mas não na regressividade emocional, não no luto, não na psicose do adulto.


O fenômeno dos bebes reborn foi vendido pela mídia como sintoma do fim do mundo e todos acreditaram. No fim, não era assim tão grave, apenas um espetáculo temático, algo para se distrair, para entreter, para atrair a atenção das pessoas e catalizar o interesse coletivo.


Nessa sociedade tão segregada por bolhas algorítimicas, o que ainda faz unir as pessoas é o patriotismo de chuteiras, milagres, promessas de resolução imediatas de problemas seculares, catástrofes, escândalos e tendências comportamentais bizarras. Os bebês reborn conseguiram atrair pessoas em torno de programas de televisão cada vez mais decadentes. Nas redes sociais, o tema foi pautado por inúmeros comunicadores que se travestem de especialistas e que lucram com os temas-da-vez.


É curioso como tantas pessoas vieram a público expressar sua opinião de forma hostil sobre mulheres que adotaram bonecas como filhos. Por que a hostilidade, se o que está em pauta é a saúde mental e a necessidade de acolhimento e compreensão dessas pessoas? Esse tema que deveria ser encarado como uma questão de saúde pública, que deveria ser lamentado pela opinião pública e gerado algum compromisso entre as autoridades médicas, ganhou ares de fenômeno midiático, com direito a povo-fala na TV, memes, ameaças e debates espetacularizados nas redes sociais.


A hostilidade que as pessoas demonstraram em relação a esse tema é um fenômeno que precisa ser estudado. Chama atenção a fala indignada de pessoas até aqui consideradas ponderadas, como o historiador e filósofo Leandro Karnal (2025), que, em 15/05/25, usou suas redes sociais para dar ares de fim-de-mundo ao fenômeno e agradecer os doentes por cuidar de bonecos e, assim, não passar seus genes para as novas gerações. A eugenia exposta em sua fala certamente agradou uma parte insana do eleitorado brasileiro que adoraria naturalizar a prática da castração química ou da limpeza étnica e social no país.


Não é de hoje que o doente mental é reconhecido como pária, ou como peso social. Ao doente só cabe o escarnio ou mesmo o prejuízo de suas próprias utopias, sem nenhuma forma de refresco sob ponto de vista do amparo ou do cuidado. Três perguntas: será que uma mulher que procura o serviço público de saúde para seu filho reborn não estaria, de fato, procurando ajuda médica para si? Não seria essa a representação objetal visível capaz de expressar seu sofrimento e sua patologia? Mas é possível esperar que hospitais estejam preparados para lidar com doenças que não estão visíveis no corpo?


A sociedade espera que o psicótico tenha consciência de sua insanidade, que o doente com neurodegeneração saiba que está praticando um ato social intolerável. É nesses momentos que Machado de Assis (1882) em seu famoso "O Alienista" se pergunta quem está mais louco, a pessoa que está presa ou aquele que manda prender.


A priori, as chamadas "mães reborn" delegam seus afetos a um objeto. Desse modo, revelam seu próprio distúrbio sem contudo traumatizar uma criança real. Então por que as pessoas ficam tão indignadas com esse comportamento?


O fenômeno observado fala muito sobre como o status materno não pode ser roubado das "mães reais", aquelas que sofrem durante a madrugada com os choros de seus bebês reais. Ou seja, o motivo das hostilidades nunca foi por causa das mães reborn, mas por causa da falta de reconhecimento social exigido com alguma justiça pelas mães reais.


Outro evento que corrobora para tal indignação é a escolha de quem pode de fato enlouquecer. Na sociedade atual, parece que há um critério preestabelecido de quem pode ter problemas de saúde mental e nele estão excluídos as mulheres e os membros da classe média ou da classe média-alta, ou seja, aqueles que podem pagar grande soma de dinheiro para comprar bebês de borracha.


Outro elemento que corrobora com essa indignação moral em torno do tema das mães e pais reborn é mais invisível e subliminar, mas compõe boa parte dos protestos sociais que estão latentes nos memes de internet e nas rezas de domingo de manhã: é a insegurança social das famílias, o medo de faltar o pão para o filho real, o medo da marginalização causada pela doença mental invisível e a tristeza sofrida por aqueles que não podem ter uma família idealizada.


Nesse sentido, o medo do fim do mundo é atualizado pela perda de status da inteligência intelectual frente às novas exigências de um mercado cada vez mais tecnológico e especializado, pelo evidente prejuízo da qualidade do pensamento num mundo em permanente disputa. O medo da derrocada frente a tentativa diária de se manter sóbrio, faz com que o sóbrio se afaste do doente, para que não seja por ele contaminado, tal é o desejo inconsciente de romper com essa realidade autoritária marcada por trabalho e por consumo e se lançar à utopia e à fantasia plena. Ou seja, a hostilidade com os doentes pais reborn reflete o medo de se perceber louco diante da difícil decisão de ter filhos reais em um mundo em profunda crise econômica e social.



REFERÊNCIAS


ASSIS, Machado. O Alienista. Domínio Público, 1882.


CORREA, Fábio. Bebês reborn estão em todo lugar ou é ilusão de redes sociais. São Paulo: Portal UOL, 20/06/25. Acesso 22/06/25 em


KARNAL, Leandro. Postagem do Facebook em 15 de maio de 2025. Acesso em 23/06/25 em https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1233040224936048&id=100046902465387&set=a.269807071259373


KLEIN. Melanie. A Psicanálise da Criança. Rio de Janeiro: Imago, 1997.


SILVINI, Pedro. 25 novas leis estão sendo implementadas para barrar bebês reborn no Brasil. 22/05/25. Acesso em 22/06;25 em https://diariodocomercio.com.br/mix/25-novas-leis-estao-sendo-implantadas-para-barrar-bebes-reborn-no-brasil/


COMO ESTUDAR O TEMA:


O tema dos bebes reborn oportunizou amplo debate que visa superar a excitação do espetáculo e dispor de recursos teóricos para melhor explicá-lo. Em debates nas escolas psicanalíticas, torna-se fundamental abordar teorias freudianas, lacanianas e klenianas. São elas:


  • A relação do sujeito com o simbólico (LACAN, em "Seminário 5 - As formações do inconsciente", de 1958).


  • As relações objetais e os espaços transicionais (KLEIN, em "A psicanáise da Criança", de 1932 e LACAN, em "Seminário 4 - A relação de objeto")


  • A forclusão e a rejeição da realidade (LACAN, em "Seminário 3 - As psicoses", de 1956)


Sob ponto de vista sociológico e filosófico, o tema ganha relevância sob ponto de vista político, pois reafirma a tendência da espetacularização midiática em torno de temas pertinentes a saúde mental, à cultura e aos movimentos de massa. Nesse sentido, são importantes os seguintes temas e anotações bibliográficas:


  • A necessidade da sociedade de transformar tudo em evento (DEBORD, em "A Sociedade do Espetáculo", de 1967)


  • A invenção de novidades simbólicas como realidade moderna (BERGER e LUCKMANN, em "A Contrução Social da Realidade, de 1976)


  • A imaginação mediada pela Internet (HAN, em "Agonia do Eros", de 2012).


SOBRE O AUTOR

João Pedro Roriz é psicanalista, licenciado em História e Filosofia e bacharel em Comunicação Social. É mestre em Psicologia pela Universidade Feevale - RS. É autor de 40 livros. Mais informações: www.joaopedrororiz.com COMO CITAR ESTE ARTIGO

RORIZ, João Pedro. O Pânico moral gerado pelos bebes reborn. Capela de Santana: Instituto Vida e Psicanálise, 22/06/25. www.vidaepsicanalise.com

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