O SERTÃO COMO CENÁRIO: DOR E RESISTÊNCIA DE "TORTO ARADO" SOB A LUPA DA PSICANALISE.
Por Instituto Vida e Psicanálise.
Itamar Vieira Junior, com sua obra premiada *Torto Arado*, traz à tona um Brasil profundo e silencioso, que ressoa nas gerações marcadas pela desigualdade, pela exclusão e pela violência. Ao situar seu romance no sertão baiano, o autor constrói um cenário onde a luta pela sobrevivência se desenrola em meio às tradições e à força da natureza. Assim evidência a dor e a resistência de um povo que convive com o abandono e a miséria secular.
As personagens Bibiana e Belonísia, entrelaçadas por um acidente trágico, simbolizam esse povo cujas vozes foram historicamente sufocadas. Neste contexto, é pertinente examinar as relações entre a herança geracional da opressão, a miséria e a falta de perspectiva no século XX brasileiro e, ainda, observar como a psicanálise pode oferecer insights e propostas de tratamento para as consequências psíquicas desse trauma coletivo.
CONDIÇÃO DE MISÉRIA E HERANÇA GERACIONAL
A herança geracional de pobreza e desigualdade tornou-se aparente através de um ciclo de exclusão que, em *Torto Arado*, é explorado por meio das trajetórias de Bibiana e Belonísia. As irmãs, que pertencem a uma família de trabalhadores rurais descendentes de escravizados, vivem em condições de extrema pobreza e sem acesso a direitos básicos. A terra que cultivam não lhes pertence, uma metáfora clara do país onde o acesso à terra e à cidadania continua sendo privilégio de poucos. A faca misteriosa que desencadeia o acidente que une as irmãs é um símbolo desse legado de violência e opressão transmitido de geração em geração. O acidente, além de mutilar Belonísia, também se torna o marco de uma nova forma de relacionamento entre as irmãs, onde a voz de uma passa a ser a da outra, o que pressupõe a interdependência forçada e mediada pela miséria.
A miséria, segundo o sociólogo Jessé Souza, não é apenas uma condição material, mas também um estado de espírito imposto pelas elites brasileiras, que, ao longo do tempo, desumanizaram as classes mais baixas. A falta de perspectiva que caracteriza a vida no sertão é exacerbada por uma economia agrária baseada no latifúndio e na monocultura, que perpetua a exploração dos trabalhadores rurais. Em *Torto Arado*, a invisibilidade dessas pessoas – especialmente das mulheres negras – reflete o apagamento histórico que a miséria produz. É uma sociedade onde a miséria não é um acidente, mas um projeto, uma violência estrutural que se perpetua atraves do tempo.
TRANSMISSÃO TRANSGERACIONAL DO TRAUMA
A psicanálise, com seu foco nas experiências subjetivas e na influência das relações interpessoais, oferece um prisma importante para se entender o sofrimento psíquico de comunidades historicamente marginalizadas. O trauma vivenciado por Bibiana e Belonísia, e de forma mais ampla pelos habitantes do sertão, pode ser compreendido pela teoria freudiana como um trauma capaz de ser expirado através de diversas gerações populacionais - pois de fato ainda refletem no comportamento, na ação e no pensamento de boa parte da população através da repetição contínua de experiências de exclusão e opressão. Freud, em *Totem e Tabu*, discute como traumas geracionais são transmitidos de forma inconsciente, de modo a criar laços invisíveis que moldam a identidade de grupos e de indivíduos. No caso de *Torto Arado*, o trauma geracional da escravidão e da exploração agrária se manifesta não apenas nas condições materiais, nas subjetividades das personagens e também em suas ações.
A mutilação de Belonísia simboliza essa perda de agência e da voz, um eco das cicatrizes emocionais e físicas que permeiam as gerações. A psicanálise, em especial no que diz respeito à sua abordagem sobre a fala e o poder terapêutico da narrativa, pode ser uma ferramenta crucial para ajudar indivíduos e comunidades a encontrar formas de resistência e cura. Jacques Lacan, com sua teoria do inconsciente estruturado como uma linguagem, sugere que o reconhecimento e a articulação das experiências traumáticas são essenciais para o processo de cura. Nesse sentido, a relação de dependência entre Bibiana e Belonísia pode ser vista como uma metáfora para a necessidade de expressão e de escuta atenta nas relações humanas como um caminho para a libertação psíquica. Reflete ainda a solidão compartilhada para enfrentamentos sociais enquanto se torna possível a manutenção de alguma dignidade.
PROPOSTAS PSICANALÍTICAS PARA A TRANSGERACIONALIDADE DO TRAUMA
A psicanálise moderna propõe a criação de espaços onde a fala possa ser ouvida e validada. No contexto de *Torto Arado*, o sertão pode ser entendido como um lugar de repressão psíquica, onde as vozes e dores das pessoas são sistematicamente silenciadas. Para romper com esse ciclo de silêncio e dor, a psicanálise enfatiza a importância do reconhecimento do sujeito em sua singularidade. A teoria de D. W. Winnicott sobre a importância do ambiente facilitador – que oferece segurança e suporte emocional para que o sujeito possa se expressar – é particularmente relevante aqui. Assim como Bibiana se torna a voz de Belonísia, a psicanálise sugere que o papel do terapeuta é ser o espaço de escuta, possibilitando que traumas ancestrais e atuais sejam elaborados.
Além disso, a psicanálise pode contribuir ao proporcionar um campo para a reflexão sobre a estrutura social que perpetua a miséria e o trauma. Silvia Bleichmar, psicanalista argentina, aborda a relação entre sofrimento social e psíquico, propondo que a cura passa pelo reconhecimento das condições externas que sustentam a dor psíquica. Para as irmãs de *Torto Arado* e os habitantes do sertão, esse reconhecimento envolve compreender as dinâmicas históricas de exploração e exclusão que perpetuam o sofrimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
*Torto Arado* oferece uma reflexão poderosa sobre a história de opressão e resistência no Brasil, pois demonstra como o trauma da pobreza e da violência estrutural se enraiza nas subjetividades das pessoas. A psicanálise, ao focar na experiência subjetiva e nas possibilidades de elaboração do trauma, oferece uma abordagem valiosa para entender e tratar os impactos psíquicos dessa realidade. Assim, o sertão baiano de Itamar Vieira Junior pode ser visto não apenas como um cenário de dor e perda, mas também como um espaço de resistência e, potencialmente, de cura.
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