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Autor convidado

Comunicação não violenta como alternativa a sistemas de valores tradicionais

Por Depack Chopra

Prefácio do livro "Comunicação não violenta", de Marshal B Rosemberg.


Ninguém merece mais a nossa gratidão do que o falecido Marshall Rosenberg, que viveu a vida exatamente como declara o título de um de seus livros: Speak peace in a world of conflict [Falar de paz num mundo de conflito]. Ele estava bem ciente da máxima (ou advertência) presente no subtítulo desse livro: "O que você disser a seguir mudará o seu mundo". A realidade pessoal sempre tem uma história, e a história que vivemos, iniciada na infância, assenta-se na linguagem. Esse se tornou o cerne da abordagem de Marshall para solucionar conflitos, levando as pessoas a trocar palavras de uma maneira que omite julgamentos, culpa e violência.


Nas ruas, os manifestantes de rosto contorcido, que compõem imagens tão perturbadoras nos noticiários, são mais do que isso. Cada rosto, cada grito, cada gesto encerra uma história. Todos se apegam à sua história com uma vingança, por- que está ancora sua identidade. Então, quando defendia uma conversa pacífica, Marshall ao mesmo tempo advogava uma nova identidade. Ele apreendeu esse fato por completo. Como ele próprio afirma a respeito da comunicação não violenta e do papel do mediador nesta nova edição, "tentamos viver um sistema de valores diferente e ao mesmo tempo almejamos mudar a situação". Em sua visão de um novo sistema de valores, os conflitos são resolvidos sem as transigências frustrantes de sempre. Em vez disso, os lados contrários aproximam-se com respeito, questionam-se sobre as necessidades mútuas e, em um clima sem paixão nem preconceito, chegam a um denominador comum.


Ao olhar para um mundo cheio de guerras e violência, onde o pensamento "nós contra eles" é a norma e os países podem romper com todos os laços de existência civilizada para come- ter atrocidades inadmissíveis, um novo sistema de valores parece estar distante. Na Europa, em conferência para mediadores, um cético chamou pejorativamente de psicoterapia a abordagem de Marshall. Em linguagem clara, será que Marshall não estaria propondo que simplesmente esquecêssemos o passado e fôssemos apenas amigos, uma possibilidade remota não só nos lugares devastados pela guerra como em qualquer divórcio litigioso?


Os sistemas de valores vêm na bagagem de qualquer visão de mundo. Não só são inevitáveis como provocam orgulho nas pessoas em todo o mundo existe uma longa tradição de valorizar os guerreiros e ao mesmo tempo temê-los. Os junguianos dizem que o arquétipo de Marte, o volátil deus da guerra, está incrustado no inconsciente de todos, tornando inevitáveis o conflito e a agressividade, numa espécie de vício inerente.


Porém, existe uma visão alternativa da natureza humana, expressa com eloquência neste livro, a qual se deve levar em conta por ser nossa única esperança real. Dessa perspectiva, não somos nossas histórias ficções criadas por nós que permanecem incólumes em razão do hábito, da coerção grupal, do velho condicionamento e da falta de autoconsciência. Até as melhores histórias abraçam a violência. Se usar da

força para proteger sua família, defender-se de ataques, lutar contra a maldade, evitar crimes e se engajar na chamada "guerra boa", você terá sido cooptado pelo canto da sereia da violência. Se quiser livrar-se disso, será bem provável que a sociedade se volte contra você e lhe dê o devido troco. Em suma, não é fácil encontrar uma saída.


Na Índia, existe um antigo modo de vida não violento chamado ahimsa, fundamental para uma vida sem violência. Costuma-se definir ahimsa como não violência, muito embora seu significado esteja presente tanto nos protestos pacíficos do Mahatma Gandhi quanto na reverência de Al- bert Schweitzer à vida. "Não faça o mal" seria o primeiro axioma do ahimsa. O que mais me impressionou em Marshall Rosenberg, que morreu aos 80 anos apenas seis semanas antes de eu escrever este texto, é que ele compreendeu os dois estados do ahimsa, ação e consciência. As ações são bem descritas nas páginas a seguir como princípios da comunicação não violenta, de modo que não as repetirei aqui. Estar consciente do ahimsa é muito mais intenso, e Marshall tinha esse atributo. Em todos os conflitos, ele não escolheu lados nem, sobretudo, deu atenção às histórias deles. Por reconhecer que todas as histórias implicam conflitos, clara ou veladamente, ele atribuiu às conexões o papel de pontes psicológicas. Isso se coaduna com outro axioma do ahimsa: o que conta não é o que se faz, mas sim a particularidade da atenção. No âmbito jurídico, o divórcio se encerra quando as duas partes firmam a divisão de bens. Porém, isso está longe de constituir o resultado emocional obtido pelas partes divorciadas. Para usar as palavras de Marshall, tanta coisa foi dita que o mundo delas mudou.


A agressão está incorporada ao sistema do ego, que se concentra totalmente em "eu, mim e meu" sempre que surja um conflito. A sociedade condescende com os santos e com o voto de servir a Deus em vez de a si mesma, mas existe um fosso enorme entre os valores que defendemos e o modo como realmente vivemos. O ahimsa fecha esse fosso apenas pela expansão da consciência das pessoas. A única maneira de acabar com toda violência é abrir mão da história pessoal. Ninguém que ainda tenha um interesse pessoal no mundo pode se tornar esclarecido esse poderia ser o terceiro axioma do ahimsa. Contudo, esse ensinamento parece ser tão radical quanto Jesus no "Sermão da montanha", ao prometer que os humildes herdarão a terra.


Em ambos os casos, o importante não é mudar os atos, mas mudar a consciência. Para tanto, deve-se percorrer um caminho de A a B, no qual A é uma vida embasada nas exigências ininterruptas do ego e B é uma consciência imparcial. Para ser franco, ninguém deseja mesmo ter uma consciência imparcial quando o negócio é estar acima de tudo, essa ideia soa ao mesmo tempo assustadora e impraticável. Qual é a vantagem de destituir o ego, que só tenta obter vantagens? Depois de o seu ego sumir, você seria passivo como um saquinho de areia espiritual? A resposta está nas ocasiões em que o eu desaparece natural e espontaneamente, as quais ocorrem em momentos de meditação ou apenas contentamento profundo. Consciência imparcial é o estado em que estamos quando a natureza, a arte ou a música criam uma sensação de arrebatamento. A única diferença entre esses momentos a que podemos acrescentar todas as experiências de criatividade, amor e diversão e o ahimsa é que aqueles vêm e vão e o ahimsa é um estado permanente. Isso mostra que as histórias e os egos que as alimentam são ilusões, modelos criados para a sobrevivência e o egoísmo. A vantagem do ahimsa não é que você aprimore a ilusão, que é o que o ego sempre se esforça em fazer com mais dinheiro, posses e poder. A vantagem é que você consegue ser quem realmente é.


Consciência superior é um termo muito arrogante para o ahimsa. Consciência normal dá mais precisão ao conceito, num mundo onde a norma é tão anormal que chega a ser psicopatologia. Não é normal viver num mundo onde milhares de ogivas nucleares estão apontadas para o inimigo e o terrorismo é um ato religioso aceitável eles são tão só a norma. Para mim, o legado do trabalho de vida inteira de Marshall não está no modo como ele revolucionou o papel do mediador, por mais valioso que fosse. Está no novo sistema de valores que ele viveu aliás, bastante antigo. O ahimsa tem de ser revivido em todas as gerações, uma vez que a natureza humana se divide entre paz e violência. Marshall Rosenberg deu provas de que ingressare nesse estado de consciência ampliada é real e, no momento de resolver disputas, muito prático. Ele nos deixa um exemplo que temos condições de seguir. Se formos dotados de amor-próprio verdadeiro no coração, nós o seguiremos. É a única alternativa em um mundo que busca desesperadamente a sabedoria e o fim dos conflitos.


DEEPAK CHOPRA é fundador do Centro de Bem-Estar Chopra e autor de mais de 80 livros, traduzidos para cerca de 45 línguas, entre os quais 22 na lista dos mais vendidos do jornal The New York

Times.


NOTAS:


1. N. da t.: ahimsa é a transliteração para algumas lín- guas ocidentais da negação da palavra sânscrita hims (injúria). Pronuncia-se arrim-sá.


PARA CITAR ESTE ARTIGO:


CHOPRA, Depack. Prefácio IN ROSEMBERG, Marshal B. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Àgora, 2021.

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