O desenho do terapeuta durante a sessão.
- João Pedro Roriz
- 14 de jun.
- 10 min de leitura
INTERPRETAÇÃO LACANIANA DE UM DESENHO FEITO PELO TERAPEUTA DURANTE A ESCUTA NA CLÍNICA PSICANALÌTICA
Por João Pedro Roriz

INTRODUÇÃO
Durante o processo analítico, é relativamente comum que o psicanalista, em determinados momentos da escuta, se permita rabiscar, escrever ou desenhar sobre o papel. Essa prática, longe de representar distração ou desatenção, pode funcionar como um recurso simbólico de elaboração. Desenhar durante a escuta flutuante também é uma maneira de sustentar a posição analítica, pois ajuda a descarregar no papel as ansiedades enquanto lida com a intensidade dos afetos evocados, com a suspensão do julgamento e com a tensão que emerge do silêncio (BION, 1991).
É um ato motor que serve como canal de relaxamento e de produção sobre todo o conteúdo recebido. É como o mais-de-gozar lacaniano, o ladrão da caixa d’água que parece, a partir do processo de contratransferência, aliviar o excesso e eliminar elementos recebidos e não totalmente processados (IZCOVICH, 2019).
O gesto gráfico também pode auxiliar na organização interna do próprio analista — funciona como contorno provisório para tudo que não foi simbolizado através da fala do paciente e que ainda foge da associação feita pelo analista. Desenhar permite uma forma de acesso ao próprio inconsciente do terapeuta; institui uma via não verbal de inscrição que, posteriormente, pode ser interrogada como produto da transferência e da contratransferência – algo do real que não pode ganhar uma moldura, mas que pode funcionar como aparelho sísmico e representar, a partir de linhas e pontos, compassos e ruídos as placas tectônicas que se movem no centro do planeta (FERRO, 2018; GREEN, 1982).
O ato silencioso de desenhar, quando realizado muitas vezes pode ser analisado e interpretado e se tornar instrumento de compreensão do ritmo e da intensidade dos discursos, além de produzir alegorias próprias dos sonhos. Desenhar durante a sessão oportuniza ação subjetiva, denota presença e certa capacidade de recepção. Contribui ainda como instrumento de contenção, para que o analista não cometa excessos nas chamadas análises diretas – quando revela suas impressões sobre o cliente. Dessa forma, o desenho se constitui como gesto clínico discreto, mas profundamente implicado na ética da escuta psicanalítica (CARVALHO FILHO e BORIS, S/D)
1 – A ESCOLHA DE UM DESENHO E SEU CONTEXTO ANALÍTICO
Para este estudo de caso, foi escolhido um desenho comum, sem qualquer intenção estética ou mesmo qualquer interesse artístico. Ao contrário: filho do pensamento livre, sem atendimento a convenções. Algo que não seria participado a ninguém, apenas ao próprio analista.
O desenho apresenta:
Intensidade: alteração no volume da voz, frequências cardíacas, ápices e declínios das emoções.
Volume: quantidade de informações, reverberações delas em diversos pontos do mapa mental do sujeito.
Extensões: alcance do sintoma, implicações, comorbidades.
Rompimentos: castrações, aniquilações, censuras, desligamentos, mudanças de assunto.
Distensões: o que estica, o que aumenta de tamanho, o que diminui, o que é elástico, o que é alcançável e inalcançável.
Curvas: o perfeito, o lúdico, o belo, o continente, o que envolve.
Retas: o que fura, o que determina, o fálico, o que atravessa, o que se destina.
Pontuações: o que fecha ciclos, o que se rasteja, o que é reticente, o que se perde pelo caminho, o que chora, o que se comove, o que morre, o que parte, o que faz parir, o que nasce.
O desenho em destaque abaixo é parte de grande coleção, mantida pelo analista, como forma de estudos sobre a interligação do inconsciente do terapeuta e do analisante. A partir dessa representação pictórica, é possível reconhecer algumas formas geométricas, pontos, setas e traços. Aparentemente sem qualquer intenção de formar imagens conhecidas, o terapeuta revela cisões, divisões, planos, pontos e linhas cartesianas, espaços de fuga, falos, buracos, interiores e exteriores, penetrações, ações, contatos e até personagens ligados a linhas e estruturas.
É difícil expor os sentimentos que cada traço revela em separado, pois são frutos de momentos distintos da fala do cliente. Mas em conjunto, é possível reconhecer elementos próprios da análise clínica psicanalítica como ações fálicas, castrações, sexualidade, romance, fases psicossexuais, marcas psíquicas, angústias, perversões, condensações, deslocamentos, censuras, execuções, desejos e ânsias.
Essa sessão psicanalítica foi realizada em junho de 2025 com a analisanda “X”, uma mulher de 60 anos, que inspirou o terapeuta a conduzir o gesto gráfico a partir do fluxo de sua fala. Antes de abordar a relação do desenho do analista com a fala, é preciso contextualizar a sessão terapêutica em questão.
“X” relatou a descoberta de uma característica que passou a nomear como sua “raridade”: a capacidade singular de cuidar do outro. Essa habilidade, no entanto, não se configurava apenas como um dom altruísta, mas como um mecanismo de evitação — uma forma de desviar-se das próprias angústias e dos conteúdos psíquicos dolorosos. O cuidado dispensado ao outro funcionaria, portanto, como estratégia de defesa frente ao sofrimento subjetivo. Esse sofrimento remonta às experiências precoces com a figura materna, mulher marcada pelo medo da solidão e do abandono. “X” vivenciou, portanto, evidente processo de parentalização com a autoridade parental feminina, o que gerou estado de catexia e de dependência emocional movida pela culpa e pela escravização de sua ética do cuidado. A mãe, em atitude perversa, movida por desespero, chegou a amaldiçoar o casamento e a gravidez de “X” na juventude, pois esses eventos a distanciariam da família de origem. Tal gesto materno não apenas reafirmou fantasmas de castração simbólica na paciente, como parece ter produzido efeitos na constituição do desejo de e na maneira como lida com vínculos afetivos (HOUZEL, 2004).
Ao longo do trabalho analítico, o psicanalista buscou tematizar a ambiguidade dessa “raridade” — tanto como potência quanto como armadilha. Foi discutido o excesso de disponibilidade afetiva e o debate demonstrou que tal atitude pode se configurar em uma forma de dependência emocional, na qual o sujeito se submete ao desejo do outro em troca de pretenso reconhecimento ou segurança. O debate se aprofundou quando o par analítico entendeu que essa dinâmica de enredo submisso não é isenta de ambivalência, pois a dependência emocional é também usada como contraditória modalidade de controle — seja no resguardo narcísico do próprio Eu, seja no aprisionamento do outro à lógica da dívida e da culpa. A frase simbólica nunca verbalizada, mas proferida de diferentes maneiras é: “se eu fizer o que me pede, em algum momento poderei pedir algo em troca” (LACAN, 1992c).
Diante da complexidade transferencial envolvida e da potência simbólica do que era verbalizado, foi produzido o desenho que acompanha este artigo. A proposta aqui é interrogar se, a partir dos traços, pontos e círculos expressos graficamente, seria possível elaborar uma leitura simbólica capaz de articular o discurso da analisanda com o inconsciente em ato do analista. Trata-se, portanto, de uma tentativa de escutar a interpretação praticada pelo inconsciente do analista, nos interstícios entre palavra, silêncio e forma.
2 – ANÁLISE LACANIANA DO DESENHO

O desenho apresentado pelo analista enquanto escutava sua paciente, “X”, pode funcionar como uma condensação gráfica do processo transferencial e das significações pulsantes no discurso. Ao considerar as formas, os pontos, os círculos, os vetores e os enquadres, é possível interpretar a composição inconsciente onde o simbólico, o imaginário e o real se cruzam. Essa é normalmente uma análise feita a partir de um desenho produzido pelo paciente, através das chamadas análises das provas projetivas, mas aqui, surpreendentemente, está elaborada pelo analista.
Na parte superior esquerda do desenho, há uma figura ovalada que envolve um círculo interno com uma trama quadriculada. Este círculo pode ser interpretado como uma metáfora do furo do real — aquilo que resiste à simbolização — revestido por camadas de proteção. Esta proteção, que se projeta ao redor, lembra a figura da mãe descrita por “X”: envolvente, sofrida, angustiada pela solidão, mas também invasiva e amedrontadora. O traço que cerca esse ponto parece um útero simbólico, mas que aprisiona mais do que acolhe. O traço da mãe, nesse sentido, seria moldado – não como sustentação do desejo, mas como marca de um gozo impossível de se nomear, o que aprisiona a filha ao fantasma do cuidado.
No centro do desenho, uma composição retangular com olhos e boca forma uma espécie de "rosto-cubo", frio, geométrico, em uma base gradeada. Dali parte uma linha que sobe, se curva e lança uma seta para a direita. O olhar mecanizado e a base geométrica lembram o Sujeito do significante: dividido, representado por traços (S1, S2), e sustentado numa lógica externa ao afeto. A seta, como vetor, remete ao desejo como metonímia da falta no Outro. Ali, a seta parece perder-se numa fumaça sinuosa — o desejo escapa, se curva, é redirecionado. É como se o desejo de “X”, ao tentar se constituir como mulher e mãe, fosse sabotado pela culpa imposta pelo Outro materno, a quem permaneceu amarrada como cuidadora compulsória.
À direita do desenho, é possível observar um conjunto mais agressivo de formas triangulares e circulares, como um alvo perfurado por linhas. Parece manifestar-se a dinâmica da demanda do Outro: aquilo que invade, exige, consome. A circularidade é interrompida por linhas retas, indicando a impossibilidade de plenitude no laço. O suposto cuidado que “X” oferece aos outros pode então ser lido, lacanianamente, como estratégia de gozo — não só para obter amor ou reconhecimento, mas como tentativa de controlar o desejo do outro, de se manter necessária e, assim, não ser abandonada. É a economia libidinal da dependência emocional como significante mestre, disfarçado de benevolência.
Os pontos, dispersos ao longo da composição, podem ser interpretados como pontos de capitonê: nós simbólicos onde o significante encontra seu referente no campo do sentido. São esses pontos que estabilizam, temporariamente, a fala de “X”, mas também a paralisam. Em vez de atravessar seu fantasma, ela gira em torno dele. A “raridade” de “X”, portanto, não é apenas uma qualidade a ser celebrada, mas também uma estrutura: ela é rara porque se constituiu como exceção no campo do Outro, mantendo-se necessária — mas nunca livre (LACAN, 1992e).
Este desenho, fruto do gesto espontâneo do analista, revela o quanto a escuta é também atravessada pelo inconsciente do próprio terapeuta. A imagem não é apenas uma ilustração, mas um ato, uma escrita. Ao transformar o que escuta em traço, o analista responde ao apelo do Outro, mas também sustenta uma posição de desejo (LACAN, 1992e). A pintura resultante desse gesto poderia, então, ser entregue à paciente não como uma explicação, mas como um espelho invertido de seu sintoma — um convite à pergunta: “o que é que o meu cuidado sustenta?” E mais: “de que maneira minha raridade se transforma em prisão?”.
Assim, sob a luz lacaniana, o desenho não se resume à estética, mas é significante em ato, rastro de uma escuta que deseja tocar o real, sem apagá-lo.
CONCLUSÃO
O desenho realizado pelo analista enquanto escutava “X” permite enxergar, de forma simbólica, o entrelaçamento entre escuta clínica, transferência e construção subjetiva. Nele, é possível observar representações visuais que expressam tanto o discurso da paciente quanto os efeitos do que foi dito no corpo do analista, através do gesto de desenhar. As formas circulares, os traços e os vetores ajudam a compreender como o sofrimento de “X”, originado em sua relação com a mãe, ainda influencia sua maneira de se relacionar com o mundo e com os outros.
A leitura lacaniana do desenho aponta que o ato de cuidar — tão presente na vida da paciente — pode funcionar tanto como virtude quanto como prisão. Cuidar do outro, neste caso, é também uma forma de evitar o enfrentamento de dores internas. Ao mesmo tempo, manter-se necessária ao outro pode ser um modo de garantir que esse outro não a abandone. Isso revela que, por trás do altruísmo, existe uma lógica emocional complexa, marcada por desejo, culpa e necessidade de reconhecimento.
Por fim, o desenho do analista revela-se não como ilustração, mas como linguagem em ato: uma maneira de transformar escuta em símbolo, de elaborar o que se escuta sem precisar dizê-lo. Ele se torna, assim, um espelho sensível e não verbal do processo terapêutico — uma peça que pode ajudar a analisanda a se perguntar sobre o sentido profundo de seu próprio gesto de cuidar e, quem sabe, redesenhar sua forma de se relacionar com os outros e consigo mesma.
GLOSSÁRIO
1. Inconsciente estruturado como linguagem - Lacan propõe que o inconsciente funciona como uma linguagem. Isso quer dizer que ele “fala” por meio de sonhos, atos falhos, lapsos, desenhos e outros gestos simbólicos — tudo o que escapa ao controle consciente, mas tem estrutura e sentido.
2. Real - O que não pode ser simbolizado, nomeado ou traduzido em palavras. É o que escapa ao sentido. No caso da paciente, o “real” está no trauma do abandono e da maldição materna — um buraco impossível de representar plenamente.
3. Simbólico, Imaginário e Real - São os três registros da experiência psíquica em Lacan. O Simbólico é o campo da linguagem, das leis e das regras. O Imaginário é o mundo das imagens e das ilusões de completude. O Real é aquilo que escapa à linguagem, o impossível de ser dito.
4. Sujeito dividido (ou Sujeito do significante) - O ser humano, para Lacan, nunca é “uno”. Ele é dividido entre o que é e o que os outros dizem que ele é. Ele está sempre representado por significantes (palavras, papéis sociais) e nunca totalmente em controle de si.
5. Desejo como metonímia da falta no Outro - O desejo humano está sempre em movimento, sempre buscando algo que falta. Ele se desloca de um objeto a outro sem se satisfazer totalmente — como se tentasse preencher um vazio.
6. Mais-de-gozar - pulsões não aproveitadas pelo ego retornam ao inconsciente para condensar e deslocar. Refere-se, portanto, a tudo que é excessivo sob ponto de vista pulsional.
7. Gozo - Diferente do prazer, o “gozo” em Lacan é uma forma de satisfação que inclui sofrimento. É o excesso, aquilo que passa do limite, mas do qual o sujeito não consegue abrir mão.
8. Significante-Mestre - É o amarrador da cadeia de significante, o elemento que direciona a lógica do desejo dentro de uma frase simbólica ou de uma cadeia de pensamentos.
9. Ponto de capitonê - É um nó que fixa o sentido no discurso. É o ponto onde uma palavra, imagem ou símbolo prende (ainda que temporariamente) uma cadeia de significados — como um botão que segura o tecido.
10. Transferência e Contratransferência - Na psicanálise, transferência é o movimento pelo qual o paciente projeta sentimentos e expectativas no analista. Contratransferência é a resposta inconsciente do analista a esse movimento.
REFERÊNCIAS
BION, W. R. (1962). Aprendendo com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
FERRO, Antonino. A psicanálise como Literatura e Terapia. Rio de Janeiro: Imago, 2018.
CARVALHO FILHO, Dácio Pinheiro; BORIS, Georges. Entre desenhos e sessões de terapia, a experiência de um Gestalt-terapeuta desenhista.
GREEN, André. O discurso vivo: a conceituação psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
HOUZEL, D. As implicações da parentalidade. In: Solis-Ponton, L. (Org.). Ser pai, ser mãe. Parentalidade: um desafio para o terceiro milênio. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
IZCOVICH, Luiz. Perversão e Psicanálise. Porto Alegre: Aller, 2019.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992a.
_________. O Seminário, livro 01: Os Escritos Técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992b.
_________. O Seminário, livro 04: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992c.
_________. O Seminário, Livro 5: Formações do Inconsciente. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992d.
_________. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeior, Jorge Zahar, 1992e.
SAFOUAN, M. (1992). Lacaniano: Um Ensino que Ainda Não Acabou.
SOBRE O AUTOR
João Pedro Roriz é psicanalista e Mestre em Psicologia. Contato: jproriz@gmail.com
COMO CITAR ESTE ARTIGO
RORIZ, João Pedro. Interpretação lacaniana de um desenho feito pelo terapeuta durante a escuta na clínica psicanalítica. Capela de Santana: Instituto Vida e Psicanálise, 14/06/25. www.vidaepsicanalise.com.
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