COMO A PSICANÁLISE PODE AJUDAR A ENFRENTAR A SOLIDÃO EM TEMPOS DE SUPERPOPULAÇÃO ENVELHECIDA E TECNOLOGIAS INDIVIDUALISTASA?
Da Redação do Instituto Vida e Psicanálise.
As mortes solitárias no Japão, conhecidas como “kodokushi”, são um reflexo de uma sociedade cada vez mais envelhecida e isolada, onde questões econômicas, sociais e demográficas se entrelaçam, criando um cenário trágico. A matéria publicada no jornal O Globo em 16 de setembro de 2024, traz à tona essa realidade brutal, onde 37.227 pessoas morreram sozinhas em suas casas nos primeiros seis meses de 2024. Esse fenômeno, também presente na Coreia do Sul sob o nome de “godoksa”, é marcado pelo envelhecimento populacional, a crise econômica e o isolamento social. Com a taxa de fertilidade em declínio e o mercado de trabalho cada vez mais excludente, especialmente para os mais velhos, a solidão parece ser um destino inevitável para muitos (1).
No entanto, essa questão não se restringe apenas ao Oriente. A solidão, como uma condição psicossocial, afeta um número crescente de pessoas ao redor do mundo, especialmente nas sociedades ocidentais, onde o individualismo impulsionado pela tecnologia tem exacerbado o distanciamento entre os indivíduos.
De fato, já há pesquisas em Psicologia relacionando solidão à morte desde 2017, ano em que Julianne Holt-Lunstad, professora de psicologia da Universidade Brigham Young, apresentou uma série de revisões de pesquisas em um encontro da Associação Americana de Psicologia, ressaltando os impactos das conexões sociais na longevidade. A primeira revisão incluiu 148 estudos que analisaram mais de 300 mil participantes e mostrou que pessoas com uma rede social ampla têm 50% menos chances de morrer precocemente (2).
Além disso, outra análise envolvendo 70 estudos com 3,4 milhões de participantes de diversas regiões, como Estados Unidos, Europa, Ásia e Austrália, indicou que o isolamento, a solidão e o fato de morar sozinho aumentam o risco de morte precoce de maneira semelhante à obesidade. Holt-Lunstad destacou que, com o envelhecimento da população, os efeitos da solidão sobre a saúde pública tendem a se intensificar, mencionando a possibilidade de uma "epidemia de solidão" que parece estar se alastrando em várias partes do mundo.
Essa “epidemia de solidão”, embora não seja exclusiva de países ricos, está relacionada a características observadas em nações desenvolvidas, como maior expectativa de vida, declínio nas taxas de casamento, menos filhos por casal, aumento dos divórcios e crescimento do número de pessoas que vivem sozinhas. Em resposta a esse fenômeno, em janeiro, o Reino Unido formou uma comissão parlamentar para enfrentar o problema da solidão.
O fenômeno atinge também os adultos mais novos. Redes sociais, aplicativos de mensagens e o constante avanço da automação no trabalho criam uma falsa sensação de conexão, enquanto, na realidade, muitos se sentem mais isolados do que nunca. O avanço das tecnologias de comunicação, paradoxalmente, aumentou a sensação de solidão. O isolamento, que se apresenta de forma dramática nos casos do kodokushi no Japão e do godoksa na Coreia do Sul, também tem raízes na crescente individualização promovida por essas tecnologias. A comunicação mediada por telas cria um espaço onde as interações são mais superficiais e menos satisfatórias do ponto de vista emocional, especialmente para os mais velhos, que podem não estar familiarizados com esses novos meios.
Além disso, a expectativa de vida aumentou significativamente, e o envelhecimento populacional é uma realidade global. No Japão, a matéria do O Globo destaca que a expectativa de vida das mulheres é de 87,2 anos, e dos homens, 81,7 anos. Com menos filhos nascendo, menos casamentos e famílias nucleares se desmantelando, os idosos enfrentam uma velhice sem suporte familiar e muitas vezes sem uma rede social robusta. Esse cenário é agravado por uma cultura de trabalho que, tanto no Japão quanto na Coreia do Sul, exclui aqueles com mais de 50 anos, privando-os não apenas de uma fonte de renda, mas também de um sentido de pertencimento social.
Psicanálise e a compreensão da solidão
A solidão não é um fenômeno novo, mas ganha contornos diferentes no mundo contemporâneo. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, já falava sobre a importância das relações interpessoais e como o desenvolvimento da subjetividade humana depende de nossas interações com o outro. A psicanálise parte do princípio de que o ser humano é constituído pelo desejo, e o desejo é, por definição, voltado para o outro. O que vemos no fenômeno das mortes solitárias e na solidão contemporânea é uma desconexão profunda com esse “outro” que sustenta o ser.
Autores como Donald Winnicott e Jacques Lacan ampliaram essa discussão. Winnicott, em sua teoria do desenvolvimento emocional, fala da importância do "ambiente suficientemente bom", representado pelos cuidados maternos que possibilitam ao sujeito se constituir psiquicamente. Sem esse ambiente, o sujeito se sente desamparado, algo que pode se prolongar para a vida adulta em situações de isolamento social, como no caso dos idosos que vivem sozinhos. Lacan, por sua vez, fala sobre a solidão a partir de sua teoria do "desejo do Outro". Para ele, o sujeito é constituído na linguagem e sempre busca se reconhecer no olhar do Outro. A solidão extrema, portanto, reflete uma falta desse olhar e de uma inserção simbólica na sociedade.
A psicanálise pode oferecer ferramentas valiosas para lidar com a crise de solidão. Primeiramente, a prática psicanalítica proporciona um espaço para a escuta, onde o sujeito pode ressignificar suas experiências e reconhecer o desejo que o move. Em um mundo onde o “outro” se torna cada vez mais distante e inacessível, o processo analítico permite ao indivíduo reestabelecer uma conexão consigo mesmo e, por meio da transferência, com o analista. Esse processo de simbolização é essencial para que o sujeito possa lidar com a solidão de maneira mais saudável.
Além disso, a psicanálise pode contribuir para a construção de políticas públicas mais eficazes. O Ministério da Solidão, criado no Japão em 2021, é um exemplo de como o governo reconhece a importância de cuidar da saúde mental dos idosos. No entanto, como aponta a matéria do O Globo citada acima, essas são medidas paliativas. A psicanálise oferece uma compreensão mais profunda dos laços sociais e das dinâmicas de desejo que estruturam as relações humanas. Políticas públicas que integrem essa compreensão podem ser mais eficazes ao promover o fortalecimento das redes de apoio, tanto familiares quanto comunitárias, e ao incentivar uma maior escuta das necessidades emocionais da população.
O fenômeno das mortes solitárias na Ásia é um sintoma de um mal-estar global, enraizado na desconexão social e no crescente isolamento promovido por fatores econômicos e tecnológicos. O aumento da longevidade e a diminuição das taxas de natalidade criam uma população idosa cada vez mais isolada, enquanto as novas tecnologias, embora prometam conectar, muitas vezes apenas intensificam o sentimento de solidão. A psicanálise, com sua longa tradição de explorar as profundezas do psiquismo humano, oferece uma abordagem que vai além da simples intervenção paliativa, permitindo que se compreenda e enfrente as raízes emocionais e subjetivas desse isolamento.
Com uma maior valorização do cuidado com a saúde mental e a promoção de vínculos sociais saudáveis, é possível que a solidão não seja o destino inevitável para tantos. A psicanálise, nesse sentido, pode desempenhar um papel crucial ao oferecer um espaço de escuta e compreensão em um mundo cada vez mais fragmentado e isolado.
REFERÊNCIAS
(1) Citado em O GLOBO 16/09/2024. Matéria "Japão registra quase 40.000 pessoas mortas sozinhas em casa este ano, com 130 descobertas após um ano, revela relatório".
(2) Citado em Época Negócios 15/08/2017. Matéria "Solidão já é causa de mortes em países ricos".
COMO CITAR ESTE ARTIGO
Instituto Vida e Psicanálise. Solidão: retrato dos novos tempos. Capela de Santana: Instituto Vida e Psicanálise, 2024.
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