Formação em EAD e contratos temporários evidenciam precarização da docência.
Por Gabriel Grabowski, para o Extra Classe
Publicado originalmente em 5 de setembro de 2023.
“Novas exigências educacionais pedem às universidades e cursos de formação para o magistério um professor capaz de ajustar sua didática às novas realidades da sociedade, do conhecimento, do aluno, dos diversos universos culturais, dos meios de comunicação”.
(Ildeu Coelho, Professor).
Como formar um professor com as capacidades requeridas acima através de uma educação à distância (EaD) de baixa qualidade, para uma carreira profissional de remuneração inferior às similares e relações de trabalho por meio de contratos temporários emergenciais?
Essa tem sido a realidade cada vez mais intensa e frequente no Brasil e no Rio Grande do Sul, onde ampliam-se as ofertas de formação inicial e continuada na modalidade EaD e aumento progressivo de contratos emergenciais temporários em detrimentos de concursos públicos.
Enquanto a União, estados e municípios descumprem várias políticas nacionais de educação, planos de educação (PNE, PEE e PME), diretrizes nacionais e leis – como a lei do piso do magistério –, gestores se sucedem anunciando medidas pontuais e ações eleitoreiras de irrisório impacto na educação pública, na formação inicial docente e na carreira dos professores.
O caso do RS, que é similar ao de São Paulo, e outros entes da federação, é uma evidência dessa realidade. Em agosto, a Assembleia Legislativa (ALRS) aprovou por unanimidade (52 votos a zero) projeto de lei enviado pelo governador para a contratação de professores, especialistas de educação e servidores de escola em caráter emergencial e temporário nas seguintes áreas:
– Até 5 mil professores temporários para atuar na regência de classe ou na educação especial e no atendimento educacional especializado (AEE); – Até 1.195 especialistas de educação temporários para a supervisão escolar; – Até 596 especialistas de educação temporários para atuarem como orientadores educacionais; – Até 1.150 agentes educacionais temporários para atuarem na interação com educandos; – Até 1.075 agentes educacionais temporários para a administração escolar.
Os contratos terão validade de até cinco anos, podendo ser rescindidos a qualquer momento, seja pelo estado ou mesmo pelo servidor. Porém, esses 9.016 contratos temporários se somam aos 36.020 vigentes, pois o projeto aprovado, também, traz a previsão de estender, por mais cinco anos, contratações em andamento cuja prorrogação foi autorizada pela Lei Estadual 15.579/2020: 25 mil contratos de professores; 600 contratos de orientador educacional; 450 contratos de supervisor escolar; 9.820 contratos de servidores de escola; 150 contratos de técnicos agrícolas, totalizando 36.020 contratos temporários.
Ou seja, estamos evidenciando mais de 45 mil contratos temporários na rede estadual, algo em torno de 50% dos professores e servidores. O temporário e emergencial tornou-se a forma hegemônica de contratação na maioria dos estados brasileiros.
Tudo isso num contexto e cenário de penúltimo ano de vigência do PNE 2014-2024, com a maioria das metas atrasadas e descumpridas.
A carreira docente no Brasil perde prestígio e interesse (somente 2,7% dos estudantes cogitam a docência como profissão).
Por outro lado, a má qualidade da formação está evidenciada em vários diagnósticos e estudos, porém, não se trata de um mero descuido, mas de entendimentos e ações tomadas pelos governos a partir de 2016.
Vejamos o descaso com as quatro Metas do PNE neste período, conforme relatório 2023 de monitoramento da Campanha Nacional pelo Direito à Educação:
A Meta 15 prevê a garantia “em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no prazo de 1 ano de vigência deste PNE, política nacional de formação dos profissionais da educação assegurado que todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam”.
Em 2017, o Ministério da Educação (MEC) lançou a Política Nacional de Formação de Professores, estabelecendo para o currículo dessa formação uma Base Nacional de Formação Docente (BNCC).
A política foi mais uma iniciativa definida de forma impositiva pela então gestão do MEC, sem diálogo com as Instituições de Ensino Superior (IES), com os profissionais da educação básica ou com as entidades que os representam.
Isso consiste em grave retrocesso para a efetivação de um Sistema Nacional de Educação e de um PNE que levasse em consideração a articulação entre formação inicial, formação continuada e condições de trabalho, de salário e de carreira dos profissionais da educação.
Um Relatório do Tribunal de Contas da União (2022) sobre essa necessária Política Nacional de Formação de Profissionais da Educação Básica e Formação Inicial de Professores conclui que a ausência de atividade de planejamento com caráter nacional tem reflexo direto na oferta dos programas de formação, que não priorizam as necessidades nacionais e acabam por concentrar a ação pública em algumas regiões da Federação, desconsiderando que a oferta de cursos e benefícios deve ter relação com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), bem como as efetivas carências de professores observadas em cada estado.
A oferta não pode ter por referência apenas as informações declaratórias dos próprios docentes interessados em adequar sua formação, resultando a expedição de recomendação concomitante à Capes e ao Ministério da Educação, para articular a oferta de vagas em sintonia com as carências identificadas.
O relatório reforça a necessidade de oferta de vagas em ensino superior, preferencialmente na modalidade presencial, bem como a necessidade de se priorizar o ensino presencial no momento formativo inicial que é corroborada pela experiência internacional.
Já a Meta 16 promete formar, “em nível de pós-graduação, 50% dos professores da Educação Básica, até o último ano de vigência deste PNE, e garantir a todas e todos as(os) profissionais da Educação Básica formação continuada em sua área de atuação”.
No período entre 2014 e 2021, a porcentagem observada vinha aumentando a um ritmo muito próximo do necessário para atingir o objetivo disposto no PNE, mas para isso se realizar é necessária a manutenção desse avanço nos anos seguintes.
Em 2020, que é o ano mais recente calculado, 1,3 milhão dos 2.230.891 docentes em atividade na educação básica não haviam recebido qualquer tipo de formação continuada.
A Meta 17, por sua vez, define: “Valorizar as (os) profissionais do magistério das redes públicas da Educação Básica, a fim de equiparar o rendimento médio das(os) demais profissionais com escolaridade equivalente, até o final do sexto ano da vigência deste PNE”.
Em 2022 o rendimento dos docentes com formação superior era, em média, apenas 82,2% do observado para os demais profissionais com esse nível de escolaridade.
A ausência de um salário digno é um dos principais, senão o principal, indicador da desvalorização da carreira docente.
A reversão desse quadro é fundamental para que a carreira tenha maior atratividade. Salários inferiores a outras profissões e relações de trabalhos temporárias e emergências não atraem os melhores quadros em nenhuma profissão.
Por fim, a Meta 18 indica: “Assegurar, no prazo de 2 anos, a existência de planos de carreira para os(as) profissionais da Educação Básica e Superior pública de todos os sistemas de ensino e, para o plano de carreira das(os) profissionais da Educação Básica pública, tomar como referência o piso salarial nacional profissional, definido em lei federal”.
A partir de informações prestadas ao IBGE por unidades federativas (estados e o Distrito Federal) e municípios em 2018 e 2021, nota-se uma imensa dificuldade de avanço rumo a condições minimamente adequadas de trabalho aos profissionais da educação, já que pouquíssimo se avançou na proporção de redes cumprindo cada um dos requisitos mensurados da meta 18.
É requisito básico e urgente a coleta, ao menos bianual, das informações necessárias ao monitoramento desta e de todas as metas do Plano, seja por meio de reorganização das pesquisas já existentes, seja pelo desenvolvimento de novos instrumentos.
No começo do deste ano de 2023, um Grupo de Trabalho foi instituído pelo MEC para propor políticas de melhoria na formação inicial de docentes.
Em agosto, o GT apresentou relatório parcial, envolvendo um conjunto de temáticas que apontam para: revisão e mesmo revogação das Resoluções CNE/CP nº 02/2019 e nº 01/2020; aperfeiçoamento da regulação dos cursos de licenciatura ofertados na modalidade a distância (EaD); formulação de plano nacional de valorização dos profissionais do magistério que articule formação, carreira, remuneração e condições de trabalho; reafirmação da Capes na formação inicial e continuada de professores; institucionalizar e ampliar iniciativas voltadas para o fortalecimento da formação teórico-prática dos licenciados, entre outras.
Além do GT, o MEC ampliou 31 mil bolsas para a formação de iniciação à docência e residência pedagógica em 2023 e outras 100 mil para 2024, por meio do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Docência (PIBID).
Desta forma, o MEC aumentou em 54% as bolsas, saindo já em 2023 de 57 mil para 90 mil bolsas. São medidas iniciais muito tímidas e insuficientes para a complexa condição docente brasileira. Políticas e programas mais estruturais são urgentes e necessários.
Hoje, diante de um cenário, a Frente Nacional pela Revogação das Resoluções CNE/CP 02/2019 e 01/2020 – que estabelecem diretrizes para a formação dos professores –, aponta alguns aspectos que justificam a imediata revogação dessas resoluções por razões como:
a imposição da ultrapassada Pedagogia das Competências e Habilidades que preconiza uma concepção pragmática e reducionista de formação e de docência, centrada em processos de (de)formação com ênfase na padronização, centralização e controle;
a redução do magistério a simples função de tarefeiros e instrutores, induzindo à alienação da categoria e ao expurgo da função social da escola e da formação, como a BNCC e a Reforma do Ensino médio propugnam;
a secundarização do processo de construção do conhecimento pedagógico e científico e sua socialização, a articulação teoria-prática e a sólida formação teórica e interdisciplinar, ferindo o necessário equilíbrio curricular e,
a desconsideração da autonomia das IES e de seus Colegiados de Curso na definição da concepção, sequência e ordenação dos conteúdos curriculares necessários à formação.
Segundo o professor pesquisador Artur Eugenio Jacobus, da Unisinos, a Educação a Distância no Brasil apresenta um crescimento e impacto não identificado em nenhum outro país no mundo.
Vejamos: ingressantes em cursos presenciais em 2011 (Brasil): 81,7%. Em 2021: 37,2%; ingressantes em cursos EaD (Brasil): 18,3% em 2021. Em 2022: 62,8%; Índice de evasão do EaD: 65%; Desempenho no Enade (ciclo 2017 a 2019): 42% cursos EaD com conceito 1 e 2 (reprovados); Formação em Pedagogia: Dados de 2021: 789.254 alunos cursando Pedagogia, desses, 75,8% cursam Pedagogia na modalidade EaD; só 24,2% frequentam cursos presenciais.
Esta formação inicial e continuada dos professores não forma teórica-praticamente o professor para o complexo processo educativo contemporâneo.
A vulnerabilidade e rotatividade dos professores em contrato temporário impossibilitam vínculos e relações de aprendizagens efetivas e sólidas com os estudantes. A educação é um processo humano que precisa ser duradouro, sólido, amigável e de confiança.
SOBRE O AUTOR
Gabriel Grabowski é Doutor em Filosofia, professor da pós graduação da Universidade FEEVALE e pesquisador. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.
COMO CITAR ESTE ARTIGO
GRABOWSKI, Gabriel. Formação em EAD e contratos temporários evidenciam precarização da docência. Extra Classe, 5 de setembro de 2023. Citado em https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2023/09/formacao-em-ead-e-contratos-temporarios-evidenciam-precarizacao-da-docencia/.
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