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A misoginia que ninguém percebeu na série "Caçador de demônios"


A "Mãe Que Não Envelhece" e o "Filho Que Não Cresce": Arquétipos, Gêneros, Idades e Invisibilidade Feminina em The Bondsman


Por João Pedro Roriz


Na série The Bondsman ("Caçador de demônios"), o ator Kevin Bacon, de 66 anos, interpreta Hub Halloran, um caçador de demônios emocionalmente estagnado, que vive na garagem da casa da mãe, Kitty Halloran, vivida pela atriz Beth Grant, de 73 anos.


A escolha de elenco chama atenção pela surpreendente proximidade etária entre os dois atores veteranos que vivem o papel de filho e mãe. Apenas nove anos os separam na vida real. No entanto, isso parece passar despercebido por público e crítica.


Que mecanismos sociais e simbólicos permitem que tal discrepância seja naturalizada? O que permite um ator de 66 anos ser reconhecido por um personagem na casa dos 40 anos, enquanto sua colega de cena viverá a idade real?


Uma leitura crítica que cruze Cinema e Psicologia, ancorada em teorias feministas, pode nos ajudar a compreender essa invisibilidade programada do envelhecimento feminino e o culto à juventude masculina.


Judith Butler nos convida a perceber o gênero como performance social reiterada. No caso de The Bondsman, o personagem de Kevin Bacon é investido de elementos simbólicos da juventude: energia rebelde, dificuldades relacionais e a promessa de transformação.


A idade real do ator (66 anos) é ocultada por uma atuação e uma mise-en-scène que o situam no arquétipo do "homem em crise", um papel socialmente aceito para homens de 40 e poucos anos. Já Beth Grant, apesar de uma atuação igualmente densa, é imediatamente enquadrada como “mãe”, com todos os marcadores sociais da velhice: a casa, o cuidado e a sabedoria amarga.


A performance de gênero, nesse caso, é distorcida por uma expectativa cultural: homens podem performar juventude mesmo quando a idade biológica já a desmente, enquanto mulheres são inseridas precocemente nos papéis do cuidado e da decadência.


Em A Velhice, Simone de Beauvoir já denunciava a maneira como a mulher idosa é apagada da vida pública, tratada como "a outra", sem sexualidade, sem relevância. A naturalização desse papel reforça a ideia de que o envelhecimento feminino é sempre aceito como “maternal” e, portanto, socialmente útil apenas se ligado ao cuidado com o outro.


Fora desse território, Kevin Bacon não é lido como um sexagenário, mas como alguém “ainda no jogo”. Ele pode ser o herói, o anti-herói, o amante. Ela, jamais.


O “olhar masculino” proposto por Laura Mulvey revela como o cinema tradicional estrutura suas narrativas a partir do ponto de vista masculino. Em The Bondsman, não há espaço para olhar o corpo da mãe — sua aparência não é comentada, sua subjetividade é acessada apenas pela ótica do filho. A câmera confere agência narrativa a Hub, enquanto Kitty existe como satélite moral.


A diferença de idade real entre atriz e personagem é obscurecida, mas a do ator é cuidadosamente velada. O resultado? Kevin Bacon ganha capital simbólico como um homem experiente e vigoroso, enquanto Beth Grant é apenas a mãe — função eterna, identidade nenhuma.


A ausência de críticas à proximidade etária entre Bacon e Grant em The Bondsman não é casual: ela revela uma assimetria profunda entre os modos como o cinema enxerga homens e mulheres, especialmente quando o tempo avança.


A aceitação tácita de Kevin Bacon como filho é também a aceitação cultural de que homens envelhecem com prestígio, enquanto mulheres são empurradas para os bastidores da narrativa. O que está em jogo não é só casting, mas a própria gramática do olhar — e do esquecimento.


Se a Psicologia nos ensina que os papéis familiares moldam o psiquismo, o cinema nos mostra que esses papéis são também construções simbólicas. E talvez o maior demônio que The Bondsman revela seja justamente esse: o pacto silencioso entre a indústria do entretenimento e os fantasmas da misoginia etária.


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PARA CITAR ESTE ARTIGO:

RORIZ, João Pedro. A misoginia que ninguém percebeu na série "Caçador de demônios". Capela de Santana: Instituto Vida e Psicanálise, 2025.

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